sexta-feira, 30 de março de 2012

Consumo e produção de felicidade

Dêem-lhe todas as satisfações econômicas de maneira que não faça mais nada senão dormir, devorar pastéis e esforçar-se por prolongar a história universal; cumulem-no de todos os bens da terra e mergulhem-no em felicidade até a raiz dos cabelos: à superfície de tal felicidade como à tona de água virão rebentar bolhas pequeninas (DOSTOIÉVSKI, Cadernos do Subterrâneo).
Epígrafe do livro A sociedade de consumo , de Jean Baudrillard (Edições 70, 2010 — originalmente publicado na França em 1970), o trecho acima já introduz bem o que me parece ser uma de suas teses centrais — focarei em uma tese neste post-resenha, pois seria uma missão impossível tentar apontar as diversas análises que o autor desenvolve ao longo dessa intrigante obra. Além disso, prefiro não falar, aqui, de sua tendência marxista de tentar reduzir a lógica do consumo às “estruturas” econômicas, inclinação com a qual não me identifico e que considero merecer diversa críticas. Enfim: a tese baudrillardiana da qual gostaria de falar é a de que nossa sociedade de consumo é uma espécie de sociedade de produção focada na produção de felicidade.
Isso significa que, em ampla medida, entendemos nossa meta de vida como sendo a de produzir mais e mais felicidade: “a felicidade constitui a referência absoluta da sociedade de consumo, revelando-se como o equivalente autêntico da salvação” (p.49). Ou seja, assim como, em certos momentos da cultura cristã, a salvação da alma aparecia como referencial absoluto que deveria guiar todas as ações terrenas, agora é a felicidade que assume seu lugar. Sendo referencial absoluto, entretanto, a felicidade acaba se transformando em uma obrigação.
Como explica o autor: “O homem-ser consumidor considera-se como obrigado a gozar e como empresa de prazer e de satisfação, como determinado a ser feliz, amoroso, adulador/adulado, sedutor/seduzido, participante eufórico e dinâmico” (p.94). Acaso algum consumidor se esqueça de tal obrigação, “lembrar-lhe-ão com gentileza e insistência que tem o direito de ser feliz” (p.94). Com efeito, nada mais corriqueiro nos dias de hoje que tal “gentil e insistente” lembrança por parte de amigos e família. Ou, então por parte do próprio indivíduo que, sentido-se faltar com a obrigação da felicidade ou ao menos da busca da felicidade, resolve consumir anti-depressivos, livros de auto-ajuda e os diversos itens do que se pode chamar “mercado espiritual”.
É tipico do homem do consumo uma certa ansiedade, a sensação da possibilidade de não caminhar na direção da felicidade e de não obter seja que prazer for. “Nunca se sabe se tal ou tal contato, tal ou tal experiência (Natal nas Canárias, enguia com whisky, o Prado, o LSD, o amor à japonesa [, nadar com os golfinhos etc.]), causará no indivíduo uma ‘sensação’ inédita” (p.95) que servirá como uma espécie de ponto positivo de felicidade. “Já não é o desejo, nem sequer o gosto ou a inclinação específica que estão em jogo, mas uma curiosidade generalizada movida por uma obsessão difusa – trata-se da ‘fun morality’ em que reina o imperativo de se divertir e de explorar a fundo todas as possibilidades de se fazer vibrar, gozar ou gratificar” (p.95).
Mas… uma felicidade obrigatória e produtora de ansiedade – não é um contrasenso? Parece que sim. Cabe, portanto, tentar entender melhor a lógica de tal “felicidade compulsória”. Segundo Baudrillard, sua lógica não é a da fruição e da abundância, mas sim a da penúria, da falta. Como? Seria possível imaginar maior abundância de objetos de consumo do que a que existe hoje?
Para resolver este aparente paradoxo é preciso ter em mente que a abundância é relativa — dizemos que há abundância quando há excesso. Ora, com a “felicidade compulsória” engendra-se uma espécie de falta virtualmente infinita, pois virtualmente infinita é a quantidade de experiências possivelmente prazerosas e acumuladoras de felicidade. É mais fácil o sujeito esgotar-se antes de percorrer metade da gama de experiências disponíveis. Assim, o excesso, a abundância, passam para um plano sempre distante.
A abundância, observa Baudrillard, só se mostra no excesso, no desperdício — mas, justamente, são poucos os consumidores (deixando de lado a pequeníssima parcela dos ricos que já perderam a conta de sua fortuna) que desperdiçam; a maioria prefere economizar seu dinheiro para gastá-lo na próxima coisa que poderá ou lhe fazer mais feliz ou rodeá-lo com os signos da felicidade (a diferença, inclusive, torna-se cada vez menos clara), vivendo, portanto, na lógica da penúria, por mais que a riqueza seja considerável!
Para resumir, o diagnóstico de Baudrillard é o seguinte: a abundância e a fruição sem finalidade não se conciliam com a lógica utilitária e utilitarista que rege a sociedade de consumo. Como escreve o autor: “o verdadeiro valor de uso dos objetos é serem consumidos e gastos ‘em pura perda’ — valor de uso ’simbólico’ barrado por toda parte e substituído pelo valor de uso ‘utilitário’” (p.206).
Explicitemos então, para terminar, a originalidade da crítica do autor: ao contrário dos que supõem que a sociedade de consumo seja supérflua, o que Baudrillard nos diz é que ela não é supérflua coisa nenhuma. Ao contrário, ela vai eliminando o supérfluo — isto é, o inútil, o excesso — na mesma medida em que multiplica as utilidades materiais e simbólicas, as “necessidades”. Ressaltando, para evitar mal-entendidos, que não se trata de dizer que a sociedade de consumo “cria necessidades” no sentido tosco dos que dizem, por exemplo, que “a propaganda cria (falsas) necessidades”, mas sim que as necessidades se multiplicam devido à própria lógica do consumo. No que diz respeito ao uso que se pode fazer dessas críticas, ao invés de procurar bodes expiatórios (mídia, capitalismo, espetáculo), parece-me mais razoável utilizá-las para se refletir sobre as formas de vida e as ações possíveis dentro desta lógica ou, para os que assim preferirem, sobre as possibilidades de se fugir dela.

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